O dia estava quente e seco, o que é comum no inverno de Brasília. Cheguei ao estacionamento no horário de almoço, como era meu costume na época. O terno azul escuro incomodava absorvendo o calor do sol brasiliense. Deixei o paletó no banco de trás, soltei o nó da gravata e desabotoei o colarinho. Antes que eu acabasse Wagner veio acenando, com um sorriso fraco no rosto queimado e maltratado pelos anos sob o sol e as drogas.
– E aí brother? – Percebi algo estranho, pois ele não chegou animado e brincalhão como sempre.
– Opa. – Respondi fechando a porta do carro.
O estacionamento, em um shopping tradicional, ainda não era pavimentado nesses dias. No tempo de seca a terra vermelha levantava nuvens de poeira, nas chuvas o barro desencorajava os clientes, preocupados em não sujar seus sapatos. Nesse dia, além de todos que frequentavam nossa reunião, havia mais alguns, que eu não conhecia, embaixo da grande árvore, nossa congregação ao ar livre. Cheguei, cumprimentei um a um e me sentei na mureta, em cima de um papel que Bodinho me deu para não sujar a calça. No chão, duas garrafas de 51 vazias, uma cheia e outra com pouco mais da metade.
Sempre que estou com o pessoal percebo os olhares curiosos dos que passam, entrando ou saindo do shopping. Em meio a moradores de rua, vigias de carros, um homem de terno conversando à vontade, parte integrante do grupo. O curioso, nesse dia, era que o pessoal estava mais quieto e mais bêbado do que o costume. Antes que eu perguntasse algo, Wagner soltou, em uma voz sem emoção, a notícia que os abatera.
– Ronaldo morreu. – Olhei para seu rosto tentando entender se era uma de suas brincadeiras. Não era. Ronaldo morava em um barraco no Pedregal, junto com seus dois filhos. Os meninos, de cinco e oito anos fugiram da mãe devido as grandes torturas físicas e emocionais que ela lhes infringia. Ela não fez questão de pegá-los de volta e ficaram morando com o pai. Fazia pouco mais de três meses que Ronaldo decidira seguir a Jesus e as coisas não estavam fáceis, já que ele havia parado com o tráfico de merla, vivendo então do dinheiro da guarda e lavagem dos carros. Era bom ver a mudança de comportamento, sua fé em meio às lutas e seu desejo de dar um futuro diferente aos filhos.
– O que aconteceu? – Perguntei tentando imaginar a tragédia.
– Cara, tudo por causa de uma pinga. Faz um tempão que Ronaldo foi a um boteco lá no Pedregal, comprou uma garrafa de cachaça, sentou e botou para a galera beber. Naquele dia o Baixinho chegou, pegou um copo e foi pegando da cachaça. Ronaldo levantou na hora e mandou colocar a cachaça de volta na mesa. O Baixinho ficou bravo com a regulagem da pinga, falou, argumentou, mas Ronaldo não deixou ele tomar.
No sábado passado Baixinho estava no bar e pagou cachaça para todo mundo. Ronaldo chegou para comprar um refri que ia levar para casa. Baixinho deu um copo cheio para ele e disse: toma, bebe ai para você ver que não sou regulado como você. Ronaldo falou que não estava mais bebendo pinga e foi ao balcão pedir o refri. Baixinho saiu do bar, voltou com um caibro de madeira nas mãos e acertou a cabeça do Ronaldo em cheio. Com ele no chão ainda deu mais duas porretadas. Ele nem conseguiu se virar… morreu lá, no chão do bar.
– E o Baixinho? – Perguntei atônito, sem digerir a história.
– Está foragido.
– E os meninos?
– Fugiram do barraco com medo da mãe vir pegá-los.
Fiquei em silêncio. Imaginei Ronaldo estirado no chão e me perguntei o que seria dos dois meninos. O silêncio foi interrompido por Wagner.
– Pastor, eu queria sentir o amor de Jesus, sentir que Ele se importa comigo de verdade. Me diz uma coisa: Jesus ama menos a gente do que vocês?
Segurei o choro por alguns segundos. Tinha quatro ou cinco pessoas prestando atenção em nossa conversa, enquanto outros continuavam bebendo distraídos. Chamei a todos e disse algo sobre não haver “a gente” e “vocês”, sobre sermos todos iguais diante de Deus, sobre seu amor, que não faz acepção de pessoas. Li um texto bíblico, oramos juntos, conversamos e chegou o fim de meu horário de almoço.
No caminho do trabalho fiquei com a sensação de ter comido algo estragado. Aquilo que cansei de ver nos noticiários da TV, com o sabor “sem sal” de acontecimentos que assolam desconhecidos e a ridícula entonação de voz dos narradores de tragédias, ganhou novo gosto nesse dia. E nos meses que se passaram aprendi que essa comida amarga faz parte do cotidiano de muitas pessoas.
Após poucas semanas, ninguém mais se lembrava de Ronaldo, Baixinho, ou de dois meninos desaparecidos. Mas a pergunta ainda ecoou algum tempo em minha mente: “Jesus ama menos a gente do que vocês?”.