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Sobre Sonhos

ELE

O ano era 1985 e o mês era dezembro, o que para mim era um pesadelo. Apesar de eu sempre carregar estampado na cara um persistente e maroto sorriso, tratava-se apenas de uma camuflagem social, para atrair vítimas ou tentar resgatar algum benefício sendo simpático: essencialmente um meio de sobrevivência de um jovem órfão de 17 anos de idade. A angústia que me abatia era por conta da proximidade das festas natalinas, pois o último mês do ano era pouco festivo, pois além de lembrar-me que eu não tinha nem onde nem com quem passar o Natal, ainda por cima era aniversário do suicídio de minha mãe, há exatamente uma década.

ELA

O ano era 1989. Eu era uma garota de 18 anos que havia acabado de chegar em Brasília para iniciar meus estudos na UnB. Morava com uma família de amigos com 4 filhos jovens como eu. Em um domingo à tarde, saímos todos para passear de bicicleta pela bela cidade enquanto eu admirava e absorvia a beleza da paisagem à medida em que pedalávamos pelas ruas largas e arborizadas da Capital. Atravessamos uma ponte e entramos em um bairro lindo – muito verde, amplo, organizado, com casas maravilhosas. – Que lugar é esse? Perguntei aos meus amigos. – Aqui é o Lago Sul, respondeu um deles. – Nunca vi nada tão lindo. É aqui que eu quero morar, pensei eu. E seguimos em silêncio curtindo a beleza daquele bairro enquanto eu sonhava com o meu futuro na nova terra cheia de possibilidades.

ELE

Minha namorada à época, sete anos mais velha, também era sozinha na cidade. Ela trabalhava numa loja de roupas bem chique no Parkshopping, não me lembro se era Caixa ou se Gerente, ou sub-gerente… Contudo, naquele ano ela recebeu inusitado convite de última hora das filhas do dono da loja, para passar o Natal com a família deles. Por certo, hoje penso, deveria ela ser pessoa bem-quista na família, ou jamais chegaria tão íntimo convite. Quando soube indisfarçavelmente me entristeci, porque, se já não tinha família, agora nem namorada teria para passar o Natal. Para meu entusiasmo, no dia anterior ao Natal, ela me contou que disseram pra ela “que o namorado também estava convidado”.

ELA

Os anos se passaram felizes. Casei, tive filhos, me formei (nessa ordem!) e comecei a trabalhar em uma pequena empresa que assessorava intercâmbios e agenciava cursos mundo afora. Eu e ele nos tornamos sócios e fomos muito prósperos e felizes criando nossos filhos e viajando pelo mundo trabalhando e curtindo como os jovens sabem fazer! Até que um dia alguém resolve jogar aviões em prédios em NY, bombas em metrôs, as galinhas ficam gripadas, o dólar dispara e a gente vai à falência. Caos! Em poucos meses perdemos quase tudo o que havíamos levado anos para construir, à exceção da bela casa em um condomínio onde morávamos com nossas crianças. Os anos que se sucederam foram muito duros; eu e ele trabalhando como loucos para pagar dívidas e sobreviver com nossas duas crianças – nessa época, vimos e sentimos a mão de Deus provendo nossas necessidades por meio de nossos familiares, nossos amigos e nossa igreja. E seguimos firmes lutando, concentrados e sem tempo para sonhar com absolutamente nada. Sete anos depois quitávamos a última dívida e celebrávamos o raiar de um novo tempo adiante de nós.

ELE

Apesar de novo naquela Brasília e tentando entender seus códigos culturais, eu já sabia bem da fama daquele bairro. Eu achava Lago Sul um nome mais que pomposo, o próprio nome em si – como se isso fosse possível – carregava certa pretensão, soberba e ostentação. Lago era coisa de rico. Sul era a parte rica das cidades. Um bairro residencial longe do barulho, do trânsito e dos problemas da cidade. Arborizado, bonito, silencioso, ruas largas, asfalto como teclas de ébano, bem policiado e cheio gente bonita em carros intangíveis. Na noite do dia 24, chegamos no fascinante Lago Sul com nossas melhores roupas. Estacionei na frente da deslumbrante casa e descemos da moto bem molhados, pois chuviscava persistentemente naquela noite. Tentamos nos secar com o que tínhamos. Não lembro mais de muita coisa daquela noite, além daquilo que penetrou minha retina e tatuou minha memória: sentado alegre – e já meio embriagado – numa larga poltrona da ampla sala, à luz de muitas e muitas velas, lá estava o patriarca, barrigudo, distribuindo presentes para todos da casa, fazendo graça, muitas piadas, algumas com e outras sem graça, mas todos riam. Eram mais de vinte pessoas ali e todos ganhavam muitos presentes. A mesa além de farta era colossal, com bebidas e comidas que eu sequer conhecia direito. Parei de ouvir a música, os risos, as falas excessivas, mergulhei em meu interior… Era muita distância financeira, muita distância educacional, um fosso cultural… distância implacável. Fosso aparentemente intransponível. Sem qualquer resignação disse a mim mesmo: “É isso. É isso o que eu quero. É por isso que vou trabalhar e batalhar a partir de hoje nesta cidade. Quero uma família, assim. Quero filhos com motivos para sorrir. Quero morar no Lago Sul. Vou ter uma casa assim e vou dar muitos presentes. Vou um dia fazer uma festa nesta dimensão de fartura. Amém!” Não sei se aquilo era mesmo uma oração, e se fosse, não sei se rezava para Deus ou para mim mesmo. Eu sabia que estava partindo do zero, aliás, do “menos dez”, e o desafio seria hercúleo. Dali em diante, trabalhei em silêncio, guardando meu sonho em absoluto segredo.

ELA

Nessa época Deus nos deu novos trabalhos e, conforme Ele mesmo havia prometido, começamos a prosperar em tudo o que fazíamos. Os sonhos foram aos poucos voltando aos nossos corações e tivemos vontade de mudar de casa. Começamos a procurar oportunidades em novos lugares e nos apaixonamos por uma quadra chamada 26 no Lago Sul – conseguimos os recursos, encontramos casas, mas nada deu certo. Até que entendemos que não deveríamos seguir com o plano da mudança. E logo depois recebi um convite inesperado para trabalhar em São Paulo e 4 meses depois nos mudamos de casa. Só não imaginava que a casa seria em outra cidade! Morei em SP por pouco mais de 2 anos, mas ele ficava na ponte aérea e a saudade começou a apertar. Ele então me fez um convite para voltar para Brasília e eu imediatamente respondi que não! “Amo São Paulo! Não quero voltar. Principalmente para a nossa antiga casa.”

– E se a gente alugar uma casinha na 26 do Lago Sul? Algo pequeno e charmosos para nós dois. Perguntou ele.

Não existe casinha pequena que possamos pagar na 26! Respondi jocosa, rindo dele.

Na mesma hora ele pegou o celular e começou a pesquisar. Meses depois, cedi à barganha e troquei SP por uma casinha apaixonante e charmosa na Quadra 26 do Lago Sul! Mas meu sonho de adolescente não voltou à minha mente até o dia em que nosso senhorio pediu a casa de volta, para vender. Não tínhamos o valor que ele estava pedindo, para a comprarmos. Que tristeza… eu amava aquele lugar e não queria sair de lá para nenhum outro. Como foi difícil e dolorido devolver o imóvel. E começamos a procurar um lugar novo para morar e mais uma vez ele encontrou: só que dessa vez era um lote com um esqueleto de casa abandonado e uma casinha desengonçada ao fundo. Tomamos coragem, compramos o lugar e nos mudamos. Chorei meses naquela tal casinha fria e horrorosa, enquanto olhava para a enorme estrutura inacabada que me amedrontava porque não tínhamos os recursos para terminá-la. Até que milagrosamente novos contratos foram surgindo, os recursos foram chegando e pouco mais de dois anos depois da compra, nós estávamos morando em uma bela casa, cujo projeto foi claramente inspirado pelo Pai.

ELE

As décadas seguintes foram repletas de altos e baixos, bem-vividas. Aventuras existenciais construídas do jeito que eu sabia, podia e conseguia. Casei-me com a pessoa mais certo que eu poderia escolher – e confirmei isto anos mais tarde. Tive dois filhos. Abri e fechei empresas. Tive dinheiro. Perdi tudo. Reconstruí. Eduquei e… Hoje quando subo na cobertura de minha casa no Lago Sul para assistir ao mais lindo pôr do sol de Brasília, com a cidade espraiada sob meus pés, apenas louvo. Não canso de louvar. “Meu bem, isto é inacreditável!” O improvável milagre se tangibilizou.

ELA

Sentada na sala envidraçada enquanto admiro a bela vista da cidade ao lado dele, a lembrança do sonho da jovem de bicicleta volta vívida à minha mente e coração: “Você mora em uma das lindas casas no Lago Sul”! sussurra a minha memória 34 anos depois! Às vezes ainda tenho dificuldade em acreditar.

Luciano Maia & Simone Maia.

Brasília, no Outono de 2025.

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