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PASSAGEM SECRETA – INCURSÃO A UM JARDIM ABANDONADO

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Aquele era o meu trajeto rotineiro diário. Nesse dia, não me sentia bem, meio para baixo. Eu nem de longe imaginava o que estava para vivenciar. Algo sobrenatural estava para acontecer que mudaria minha vida em todos os aspectos.

 

Um vazio interior e uma angústia cresciam gradativamente, dentro de mim. Era como se uma mão de aço envolvesse minhas entranhas e, do baixo ventre para cima, fosse esmagando-me as vísceras, ao ponto de quase faltar-me a respiração. Ofegante, sentei-me em um banco da pracinha da qual me aproximava naquele momento. O mundo girava em tresloucada velocidade, em torno de minha cabeça. Quando tudo se foi normalizando, meus olhos anuviados, divisaram, do outro lado da rua, uma abertura quase imperceptível no muro recoberto de viçosa hera. No umbral da porta também recoberta de trepadeiras, havia folhas sugerindo uma inscrição. Esfreguei meus olhos na esperança de desembaçar a visão, mas tive que me aproximando até chegar à frente do misterioso portão e pude decifrar o nome “Passagem Secreta”.

 

Curiosidade crescente, entrei e deparei-me com um jardim totalmente desolado. Espinhais cresciam espalhados pelo jardim. Roseiras e outras plantas exóticas sufocadas por trepadeiras. Lá ao fundo, um prédio abandonado, paredes com rebocos esburacados, cheias de rachaduras, janelas e portas desbotadas, ferrolhos e trancas enferrujadas. Era uma propriedade privada. Como é que nunca havia me apercebido da existência daquele jardim e muito menos daquela espécie de biblioteca? Por que ninguém nunca me falara de sua existência? Estava o tempo todo ali, no mesmo endereço, fechada, desolada, dando a impressão de completo abandono.

 

Aproximei-me da portaria e ninguém havia para me recepcionar. Empurrei de leve a porta da entrada, abrindo com um rangido estridente das grisalhas. Na recepção não havia balconista. Um aviso na porta, após a recepção, advertia: “ÁREA RESTRITA” – “PROIBIDO O ACESSO DE ESTRANHOS”. Um dispositivo eletrônico coberto de pó, chamou-me a atenção. Limpei-o com o máximo cuidado, para não deixar minhas digitais. Era justamente um identificador biométrico provido de sensor de digital, carômetro, retinoscópio e iridoscópio. Uma  fechadura de alta tecnologia. Ao aproximar-me da porta, um ‘led’ verde piscava, enquanto uma voz robótica feminina anunciava que eu me aproximava de área de acesso restrito, solicitando minha identificação biométrica. Encostei minha testa no local indicado enquanto coloquei minha mão no identificador para leitura digital. Uma espécie de escâner foi ativado e lia as informações de minha mão e olhos.

 

“Bip-bip!” seguido de um estalido. Quase não acreditei quando a porta se desbloqueou e abriu-se frente a mim. Recebi um bem-vindo eletrônico e, antes que a porta voltasse a fechar-se, adentrei ao corredor e segui direto à biblioteca. Estava por demais curioso para descobrir que tipo de acervo estava ali catalogado. Em vez de livros havia ali uma interminável fila de arquivo compostos de várias gavetas de pastas suspensas. Fui logo ao arquivo principal. Gaveta zero. Um livro bem encadernado em cima do arquivo – MANUAL DE INSTRUÇÕES DO ARQUIVISTA CENTRAL . Um curioso aviso colado na gaveta chamou-me a atenção: “Este arquivo necessita de manutenção urgente. Precisa-se de um arquivista”. As informações estavam na maior desordem. O catálogo de arquivos totalmente desatualizado. Inúmeras caixas com dados, empilhadas pelos cantos da sala. Um odor desagradável, um misto de mofo e matérias em decomposição, invadia o ar do recinto, tornando a atmosfera inóspita. Um verdadeiro caos. Pensei na trabalheira que o tão esperado arquivista tinha pela frente; senti muita pena dele. Coitado!

 

“Oh, Deus! Não é possível!” Eu era o arquivista tão esperado. Atordoado, em parafuso, não sabia por onde começar. Meu desejo era ver tudo aquilo no mais perfeito arranjo. Cada pasta; cada gaveta; cada arquivo totalmente organizado. Mas não me iludi, pois o trabalho era árduo e precisaria de várias jornadas de trabalho para concluir minha tarefa e dar-me por satisfeito. Lembrei-me do que o meu velho sempre dizia o óbvio: “Se temos que fazer alguma tarefa, então que comecemos pelo começo. Este é o melhor caminho. Uma tarefa de cada vez e, quando você menos esperar, terá concluído seu trabalho”.

 

Na primeira gaveta do arquivo 001 encontrei os documentos todos em perfeita ordem. Trava-se do histórico de alguém, desde a sua concepção ao seu nascimento, prosseguindo até os primeiros 5 anos de vida. As pastas deste período estavam em razoável ordem. Não fora um grave acidente aos 18 meses, estaria tudo perfeito. Sua babá, por um descuido, deixara o bebê cair de seus braços, de ponta cabeça, quebrando-lhe o nariz. Na ânsia de fazer o bebê se calar, a ama colocou-o na rede e este logo adormeceu. Mas tarde, quando acordou estava com o olho direito vesgo, quase totalmente branco, com a íris totalmente escondida, além do nariz bastante inchado.

 

Tentei organizar aquela gaveta, mas algo não se encaixava muito bem, até que ouvi uma Voz Interior dizer em meu coração: “Tem que liberar perdão”. Lembrei-me que algo semelhante acontecera comigo e que guardava por longos anos aquela mágoa incrustada no coração. Após muita relutância, resolvi perdoar minha babá. Algo extraordinário acontecera: os dados foram precisamente catalogados e a gaveta ficou impecável. Uma luz suave emanou daquele arquivo.

 

Mais adiante, encontrei uma outra gaveta desorganizada. Correspondia ao último sábado de fevereiro de 1957, aos 6 anos. Uma espécie de aula extracurricular acontecia. Eu podia ver como  em um vídeo. Um menino tentava cantar uma musiquinha que aprendera no circo, mas esquecera da letra e todos caíram na gargalhada. Até aí tudo bem, mas quando ele percebeu que sua professora estava caída ao chão, sem fôlego, roxa de tanto rir da palhaçada involuntária que ele criara, ficou revoltado e nunca mais se apresentou em nenhuma reunião do grêmio da escola. A mesma Voz Interior orientou para que fosse liberado perdão, pois ninguém fizera aquilo por maldade, mas por causa da comicidade da cena, mesmo. Os dados foram retirados de uma caixa ao canto e classificados corretamente. A mesma luz suave também luziu dessa gaveta.

 

E assim foi, todas as vezes que encontrou situações embaraçosas naquele imenso arquivo. As coisas foram-se resolvendo uma após outra; dia após dia, semana após semana, até que finalmente cheguei ao último arquivo.

 

Curioso era que nunca terminavam de chegar dados, mas eu já aprendera a lição e ia logo tratando de os catalogar, com a mesma rotina que a Voz Interior me ensinara. Amor, onde carecia de amor e perdão, onde deste necessitava. E quando lotava aquele último arquivo, imediatamente surgia um novo para receber os dados mais recentes. O ambiente interior ficou limpo e iluminado. O catálogo central automaticamente ficou organizado. Até uma redução de arquivos houve, pois, os dados agora estavam em perfeito arquivamento, resultando uma considerável redução do consumo de energia da biblioteca. O odor desagradável de mofo e podridão dera lugar uma fragrância ímpar de flores do campo. Agora dava gosto estar ali.

 

Depois disso tudo, até eu experimentei uma mudança radical. Sentia-me mais leve, amável, confiante e sociável. Sorria espontaneamente até nas adversidades. Aprendera a confiar mais em mim. Passei a sonhar e buscar a realização de meus sonhos. Tudo ao meu redor agora fazia sentido. Naquela noite, ao sair dali, percebi que o prédio tinha um novo aspecto. Agora na portaria o funcionário antigo havia retornado ao seu posto. Consciência era o seu nome. Saudou-me gentilmente e desejou-me uma boa noite, com as bênçãos do Eterno. Na portaria, um segurança bem equipado. Seu nome, Guardião Mensageiro, enviado para servir aos que herdarão a vida eterna.

 

A fachada do prédio dava gosto de se ver. Nem de longe lembrava aquela construção degradada que encontrei no início desta experiência. O jardim, agora bem cuidado, trescalava suave aroma das variedades de flores que se abriram ao entardecer. “O coração alegre aformoseia o rosto, mas o espírito abatido apodrece os ossos”. Essa frase aprendi no Manual de Instrução. Nunca mais descuidei daqueles dados, que passei a guardar e cuidar como se fossem meus. E certamente eram meus, dada a coincidência e extrema semelhança comigo.

 

Saí dali com uma vontade incrível de subir o mais alto que pudesse e gritar para todo o mundo aquilo que eu havia experimentado, mas quem, de fato, gostaria se saber disso? Ninguém iria mesmo se importar com uma história dessa.

 

Se você se identificou com este conto, há um jardim secreto, margeando um arquivo particular, aguardando por você, para que seja reorganizado. E não se esqueça de seguir as instruções do MANUAL DE INSTRUÇÕES DO ARQUIVISTA CENTRAL.

 

Deus abençoe todos!!!!

 

 

Bosco Esmeraldo

Pastor, Teólogo, Escritor

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