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O PARADOXO DAS LÁGRIMAS.

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O verdadeiro sorriso nunca engana, ele é bem sincero. A externalização no rosto do que está acontecendo dentro da alma, refletindo pro mundo a alegria que inunda o ser. Mas o choro é diferente. O choro não é óbvio, sendo até paradoxal. Se o choro fosse uma pessoa, possivelmente ele seria diagnosticado com esquizofrenia, pois podemos chorar de dor, de tristeza, de angústia, medo ou fraqueza. Mas também podemos chorar de felicidade, emoção, alívio, gratidão, prazer… Acabei de cair no choro. Chorei como criança! Não me contive…

 

Fui um jovem que não chorava. Foram tantas as agruras da infância e adolescência que gastei meu estoque de lágrimas bem cedo na vida e por defesa da alma, acabei criando uma crosta bem grossa que impedia as emoções de brotarem à flor da pele, assim me identificava com os versos de Andrea Doria que dizia: “Nada mais vai me ferir! É que eu já me acostumei com a estrada errada que eu segui e com a minha própria lei. Tenho o que ficou, e tenho sorte até demais…” (Renato Russo).

 

Mas houve um tempo em que estas lágrimas represadas na barragem da vida transbordaram sem controle, rompendo tudo, como em Brumadinho… Santo acidente, provocado pela descomunal força das águas do Espírito Santo. Voltei a chorar… Deus foi retirando aquela crosta de rejeitos da alma sofrida e de repente tudo correu, inundou e escorreu…. sem limites! Assim, me converti num chorão, até que aprendi com o próprio Espírito que já estava bom de extremismos… Autocomiseração também é uma doença. Por fim o efeito pendular (que me levou de um termo ao outro) foi se equilibrando, o pêndulo foi parando, fui me curando dos extremos.

 

Como disse, acabo de cair no choro! O melhor dos choros, que é o choro de alegria e emoção. Minha alma não conseguiu conter o que estava represado. Hoje é o oitavo dia que estou diagnosticado com COVID-19. Passei toda semana quarentenado no meu quarto, sem olfato, sem contato físico com minha esposa e sem visitas. Considerando as fatais notícias que lemos diariamente na imprensa, passei até feliz com os sintomas não tão severos. Estar trancado num quarto confortável com Whatsapp, Netflix e Youtube nos permite um nível de distração que a humanidade simplesmente desconhecia até ontem. “A vontade de viver mantém a vida de um doente, mas, se ele desanima, não existe mais esperança” (Provérbios 18:14).

 

Tudo transcorrendo tão bem que eu só agradecia a Deus entre os litros e litros e litros de água para manter-me bem hidratado. Desci para me aliviar e… Pimba! Senti o mais maravilhoso dos aromas que a minha memória poderia alcançar… Chegou às minhas narinas o indescritível cheiro do almoço que Simone preparou pra mim. Bateu forte, intenso, agudo. Como eu jamais tinha observado ou apreciado. Mesmo com a máscara, o cheiro dos temperos foi tão abundante que o senti no mais profundo do meu cérebro… Inexplicável! Como se nunca tivesse sentido aqueles aromas antes! Narina virgem. O cego que enxerga pela primeira vez! Invadiu-me completamente! Instantaneamente, sem controle, como criança, caí no berreiro! Emocionado com aquele cheiro sublime, magnífico, excelso, supremo, extraordinário, glorioso, milagroso, prodigioso! Sim… Me falta um adjetivo superlativo que exprima o que senti! Transbordei em lágrimas… Talvez por lembrar dos muitos que não tiveram o mesmo fim e já estão noutra vida. Talvez por perceber que sobrevivi a esta doença cruel. Ou talvez apenas pelo simples fato de constatar que a vida é muito, muito simples… E que sentir cheiro é algo inestimável, que no cotidiano, nem sempre prestamos a atenção devida. A vida é um milagre!

 

“Existem apenas dois modos de viver a vida: um é como se nada fosse milagre; o outro é como se tudo fosse um milagre. Eu acredito no último.”

Albert Einstein.

 

Sou um cara que presta muita atenção na existência. Reflito nos detalhes. Curto os prazeres da vida profundamente. Não morrerei com a culpa do pecado de não ter curtido o dom da vida, presente que Deus nos deu!  Aproveito do sexo intensamente. Curto sem reservas os aromas de uma taça de vinho. Aprecio cada o pôr-do-sol como se fosse o último. Deixo meu corpo vibrar na batida e nas notas musicais de canções profundas. Não deixo de criar oportunidades para degustar o hoje, como se fosse o meu último dia. Papai do Céu sabe que estou prontinho para morrer, hoje. Se ele me quiser lá com Ele: bênção! Se ele quiser me deixar aqui mais uns quarenta anos: bom também! Hoje recebi uma daquelas recicladas mensagens de auto-ajuda de internet declamando que “nós temos que aproveitar mais a vida…” Nem lí até o final e proferi em voz alta: “Nós não! Fale por você! Eu já aproveito a minha vida!”

 

Deixo a COVID-19 de forma óbvia – pronto para cumprir ainda mais severamente a instrução bíblica:

“Portanto aconselho que se desfrute o melhor que a vida pode proporcionar, porquanto debaixo do sol não existe nada mais feliz para o ser humano do que simplesmente comer, beber e alegrar-se. Essa é a felicidade que nos ajudará a superar os difíceis dias de trabalho durante todo o tempo de vida que Deus nos conceder debaixo do sol!”

Eclesiastes 8:15.

 

Luciano Maia

Outono’21

 

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