“Lembrem-se das coisas passadas, das coisas muito antigas! Eu sou Deus, e não há nenhum outro; eu sou Deus, e não há nenhum como eu.” – Isaías 46:9
Hoje me questionei sobre algo que eu mesmo havia dito há pouco tempo. No Café com Deus de domingo passado, falando sobre minha conversão, eu disse que Deus já vinha me chamando para servi-lo há muitos anos, mas que eu o negava. E que Ele respeitou a minha vontade e o meu livre-arbítrio até quando eu, tomado por um sentimento irresistível, não pude mais me esconder Dele e decidi então entregar minha vida em Suas mãos. Meu questionamento surgiu enquanto eu lia sobre a soberania de Deus e me pareceu que era um total absurdo, de uma petulância ímpar, uma verdadeira heresia, dizer que eu teria qualquer poder para “negar” a vontade Deus, ou que Ele havia “respeitado a minha vontade”, ou que eu próprio teria tido o poder para “decidir entregar minha vida em Suas mãos”. Mas antes que eu pudesse me arrepender do que havia dito, achando que se tratava de uma asneira sem tamanho, Deus tocou meu coração e me mostrou que as coisas não são tão simples assim, nem para um lado, nem pra o outro.
A soberania de Deus é um ponto pacífico e fundamental do cristianismo. Ainda assim, não é um tópico de fácil compreensão. Apresentada de forma prática nas profecias, na eleição e na predestinação, a soberania divina é resultado de alguns dos atributos intrínsecos e incomunicáveis de Deus: onisciência, onipresença e onipotência.
É pelo reconhecimento da soberania de Deus que, no passado, eu questionava Seus desígnios: “Porque Deus criou satanás, sabendo que cairia? Porque o deixa tentar a humanidade? Porque criou Adão e Eva, sabendo que dar-se-iam ao pecado?”. Ou ainda, de forma mais prática: “Porque Deus deixou acontecer aquele ato terrorista? Aquele terremoto terrível? Aquele acidente fatal? Porque deixou aquele bandido matar um inocente? Ou aquela criança morrer de câncer? Porquê?”
Para responder perguntas como essas precisamos estudar um outro conceito: o livre-arbítrio, que nos torna conscientes de nossos atos, consequentemente responsáveis por nossas escolhas e suas consequências.
Dicotomia discutida a fundo desde o início no séc. V entre Agostinho e Pelágio (com ramificações nos dias atuais), mesmo que pareçam conceitos opostos, a soberania de Deus não é anulada diante da liberdade que o Criador dá ao homem, pois é da vontade Dele que o homem seja livre: o que só acontece verdadeiramente quando a nossa escolha vai ao encontro da vontade de Deus (Romanos 6).
Ao mesmo tempo, a vontade consciente do homem é um fato, não se tratando de um simples engodo ou artimanha. Em suma, Deus, em Sua soberania, escolhe nos deixar livres para que, criados à sua semelhança, também possamos exercitar o poder de escolha, mesmo Ele já sabendo o que iremos escolher, pois o Deus eterno, em sua onisciência, se encontra além do tempo, além da física, além da própria criação. Assim, a predestinação não acha conflito com a vontade do escolhido.
Imagine Deus tendo que procurar outro Ananias, porque Paulo, em uma visão, enxergou um homem de nome Ananias orando por ele (Atos 9:10-18) e o primeiro Ananias que o Senhor procurou, tinha negado em fazer conforme a Sua vontade. Por mais que essa possibilidade seja cômica e pudesse gerar uma bela esquete de humor, algo assim nunca aconteceria, pois o Senhor conhece nossos corações e sabe todas as nossas escolhas, assim, desde o princípio, tinha que aquele Ananias responderia ao Seu chamado, mesmo que não o faça sem hesitação.
Perceba que Jesus aceita nossas escolhas. Cristo cura quem quer ser curado, mesmo que não saiba explicar a benção que busca (João 5:6). É preciso querer, é necessário crer, é fundamental que se tenha fé para que o milagre aconteça (Atos 14:9).
Mesmo que, a primeira vista, a soberania de Deus possa parecer incoerente com a liberdade do homem, o maniqueísmo desaparece à luz do amor de Deus por nós. Assim, a resposta para todos aqueles questionamentos acerca da vontade soberana de Deus é, a meu ver: “Por amor”. Tudo que acontece ou deixa de acontecer é pelo amor de Deus pela criação. Por cada um de nós. E você pode perguntar “mas então é por amor que Deus deixa uma pessoa matar a outra?”, e a resposta é sim, exatamente. “E é por amor que Deus deixa uma tragédia natural ceifar vidas?” e a resposta é que, mais que isso, Ele não só deixa, como Ele causa a tragédia que ceifa vidas. “E é porque o ama que Deus deixa um inocente morrer?”, e a resposta é que sim, e também que, na verdade, nenhum de nós é realmente inocente.
É fundamental reconhecer que somos maus. O ditado “de boa intenção o inferno está cheio” provem do simples fato que por vezes causamos o mal até quando achamos estar fazendo o bem. E cada um sabe o mal que seria capaz de fazer se não houvesse leis, códigos de conduta moral e, principalmente, a graça de Deus em nossas vidas.
Se entendermos que o mal é como a escuridão, não existindo por si só, mas surgindo a partir da ausência do bem, assim como a escuridão é simplesmente ausência da luz, podemos concluir que o mal nada mais é que o delta da distância entre Deus e cada um de nós. Talvez alguns mais distantes que outros, mas todos extremamente distantes.
Desta forma, compreendo que somos maus porque Deus nos ama. Porque Ele nos permite sermos nós mesmos e portanto, maus. Já que, por uma questão de lógica, se eu fosse bom eu não seria eu mesmo, mas o próprio Deus, já que Ele é o único verdadeiramente bom (Marcos 10:17-18). Por isso, quando Jesus nos pede para tentarmos ser como o Pai (Mateus 5:48) é para mirarmos no centro do alvo para quem sabe acertarmos ao menos na parte mais externa da borda, o que para nós já seria impossível, se não pela graça de Deus. Penso que é por Seu amor inexplicável, que Ele nos deixa ser quem somos, apesar de tudo.
Stevan Maia de Camargo Corrêa.
Outubro/21